segunda-feira, 25 de junho de 2012

Sobre percepções gustativas

Quando eu era criança - isso não faz muito tempo -, costumava encerrar os familiares almoços de domingo com algumas sobremesas - isso não mudou tanto. Uma delas normalmente era um creme (que minha bisavó fazia com cremogema) com gelatina. Era uma delícia! E até hoje tenho lembranças dessa sobremesa, que me remete diretamente aos primeiros tempos dos quais posso me lembrar. No entanto, não é de nostalgia que pretendo tratar aqui, mas sim de gelatina, ou melhor, de gosto.


gelatina com morango (não é o da minha bisavó!) 

Ainda pequeno não era capaz de duvidar sobre se aquele pó que, adicionado de água, se transformava num bloco firme mas não estático, era feito com frutas naturais. Na embalagem, o fabricante anunciava o sabor do pozinho. E nós comíamos... de olhos fechados. Alguns preferiam o "sabor morango", outros o "sabor framboesa", outros o "sabor uva"...
Um pouco depois, coisa de criança, ficava lendo as embalagens que diziam isso: "pó para gelatina sabor morango"; "contém aromatizante sintético idêntico ao natural"; ingredientes - açúcar, gelatina sal, ... aromatizante, edulcorantes artificiais aspartame, etc.". Não havia morango. Mas havia cheiro de morango. Eu dizia que tinha sabor de morango, como constava na embalagem. E é este o assunto sobre o qual pretendo discutir.
A nossa boca e o nosso nariz são os grandes órgãos do gosto. É neles (e através dos olhos também - sem esquecer o tato) que sentimos as características que nos fazem diferenciar um alimento de outro. É pela ação deles que podemos dizer se algo tem gosto, e identificá-lo. Na embalagem da gelatina, contudo, era enorme o dizer: sabor MORANGO. Menor um pouco, ou muito menor, e bem no canto, escondido: aromatizante artificial morango. Pois é sabor ou é aroma? Seria a mesma coisa? Adianto que não (aliás, hoje não há mais o "sabor morango", mas " gelatina Morango"), e explico: aroma é cheiro, perfume, ainda que se perceba tanto no nariz quanto na boca; sabor é doce, ácido, amargo, salgado, umami, alcaçuz, etc. Os aromas são conferidos por moléculas ditas aromáticas, que, em contato com receptores no nariz e na boca, permitem ao nosso cérebro associá-las a algo. Estes receptores são mais numerosos no nariz, o que nos permite identificar alimentos estragados sem introduzí-los no nosso organismo. Por isso, quando estamos resfriados sentimos menos "gosto". Há substâncias que possuem sabor, mas não aroma, como no caso do Cloreto de sódio (NaCl), o sal de cozinha. Há outras que possuem muito aroma, mas pouco sabor, como o açafrão.
Estamos acostumados, quando bebemos cervejas de trigo, a dizer que elas apresentam aroma de banana. Sim, ambos tem ésteres comuns, o que nos faz pensar em tal associação. Agora, experimente perguntar a um bávaro que costuma beber Weissbier todos os dias no seu desjejum e que nunca comeu uma banana sequer se quando ele o faz, sente aroma da fruta. Ele dirá categoricamente que não tem tal aroma.


 Esta foto é meramente ilustrativa, mas não quer dizer que ele nunca tenha bebido uma Weiss!

Depois, faça-o comer uma banana. Ele dirá que tem aroma de cerveja de trigo. E ele não estará errado! Como dito acima, a nossa capacidade de identificar os aromas nos permite fazer associações, mas os aromas são portados por moléculas as quais podem estar presentes (ou serem desenvolvidas) em "alimentos" diversos e tal associação é feita a partir da nossa "memória gustativa". Da mesma maneira, é possível dizer que uma weissbier tem aroma de cravo, de pão, etc.
Na nossa língua, existem milhares de receptores, ditos papilas gustativas. Elas identificam os sabores ligando-se a substâncias determinadas, as quais atrelam-se a tais sabores, como no caso do sal, que tem como composto básico o cloreto de sódio. Açúcares como a frutose, a sacarose e a maltose são mais ou menos doces, mas são sempre doces. Já o sabor ácido está relacionado, com o perdão da redundância, aos ácidos, como por exemplo o ácido cítrico, presente no limão, na laranja, o ácido acético, presente no vinagre, etc. No início do texto, porém, quando falava da gelatina, disse que na embalagem constava o seguinte: "edulcorantes artificiais aspartame". Ora, aspartame é, na verdade, Ácido Aspartâmico, logo, com o perdão da redundância, um ácido. Entretanto, é doce!
Faz pouco tempo, uns 100 anos, no Japão, foi identificado que o sabor do glutamato (um aminoácido - ácido glutâmico) não era salgado, nem doce, nem amargo, nem ácido. O sabor do glutamato foi chamado de UMAMI, que em japonês significa "saboroso". Em estudos posteriores, descobriu-se que o umami, na verdade, se associava também, e mais fortemente, com os outros sabores, ou seja: na presença de umami, uma sopa com pouco sal era mais prazerosa que uma sopa com pouco sal sem umami. Isto porque, em alguns dos receptores para o umami, este age como um facilitador para a percepção de outros sabores, e assim, potencializa-os. Estes receptores, assim como todos os outros estão distribuídos por TODA a língua, e não em áreas específicas como costuma-se dizer. Há que se considerar, todavia, que as concentrações desses receptores podem ser variáveis. Sendo assim, de fato, na ponta da língua sentimos mais facilmente o sabor doce, nas laterais anteriores, o salgado, nas posteriores, o ácido, e no centro, o amargo, como mostra a figura.


Os receptores estão distribuídos por toda a língua, ainda que com concentrações diferentes

Hoje em dia, desconfia-se ainda da existência de outros sabores (infinitos, quem sabe?), como o alcaçuz. Considera-se importante, também, a análise da oleosidade (gorduras), da adstringência (taninos), da picância (cápsicos), da temperatura, da densidade, etc., e se tais elementos influenciam e/ou  representam "sabores". Isto mostra que ainda há muito o que pesquisar, desvendar, e que as verdades absolutas não são bem aceitas.

Um abraço.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Futebol e Comida: Duelos e Harmonias - Parte 3: Barcelona

Terceiro texto da série, e é a vez de falar da maior cidade europeia do Mar Mediterrâneo. Cidade com uma riqueza artística ímpar e de beleza especial. Logradouro de vanguardistas nas mais variadas artes. Cito Gaudí, Miró, Puig, Santi Santamaria (o grande chef), podendo citar outros... Refiro-me, obviamente, a Barcelona, a capital da Cataluña.
Acima, falei de arquitetos, pintor, chef, mas por que não falar dos grandes artistas da bola? Barcelona é local de nascimento, ou de criação, dos maiores jogadores e do maior time de futebol do mundo atualmente. Catalães de nascimento, e/ou barcelonistas de criação, Xavi Hernandez, Andrés Iniesta, Lionel Messi, que apesar de nascer na Argentina, foi para lá com apenas 13 anos, portanto é filho das canteras do Barça, o técnico Josep Guardiola, que também é prata da casa, e outros... Estes são, hoje, alguns dos principais nomes da arte de Barcelona. Xavi é o maestro, é o regente de uma orquestra que não desafina. Iniesta é o arquiteto. Constrói jogadas decisivas, nos mais importantes momentos das partidas. E Messi é o grande pintor, o maior de todos. Seu pincel é a perna esquerda, que desliza sobre a tela verde carregando a bola sem que seja importunado. Perambula o quadro inteiro, e com pinceladas certeiras, algumas leves, outras arrojadas, desenha as mais belas obras da arte futebolística.
O Barcelona é um time romântico, mas ao mesmo tempo é um time de vanguarda - se é que isso é possível. É um time que joga por valores (não os valores em cifras, mas os valores humanos). É um time que preconiza o uso de atletas lapidados nas próprias categorias de base. É um time que inventou um estilo próprio de jogar, e hoje é um paradigma no futebol mundial. É um time que joga um futebol vistoso, joga para o ataque, mas não me venha falar que joga à moda antiga! O futebol de hoje em dia é outro, e o Barcelona criou e põe em prática o que há de mais avançado no esporte - a imposição de seu estilo, um quase perfeito jogo coletivo e jogadores com enorme qualidade individual.
Dá gosto de ver este time, que se apresenta como o maior que já foi visto na história do futebol mundial (e afirmo isto sem medo)!
Como disse no texto anterior, a Cataluña é um estado que compõe a Espanha, mas que diverge bastante em termos de cultura: numa análise superficial, dizer que catalão é "espanhol" seria o mesmo que dizer que seriam também "espanhóis" os bascos, ou os portugueses. Obviamente, não se pode ignorar alguma proximidade entre a cultura castelhana e a catalã, mas existem diferenças visíveis, como no caso do preparo de um dos pratos mais típicos da península ibérica, o cozido, ou o cocido. Na Cataluña, ele é chamado de escudella e apresenta, é claro, diferenças quanto à elaboração. Mais uma vez, não é a intenção passar uma receita, pelo mesmo motivo citado no segundo texto, em que falei sobre os callos a la madrileña. Porém, segue aí uma ideia de como é a tradicionalíssima Escudella catalana.
Baseia-se, como em qualquer cocido, no princípio de cozer um conjunto de carnes com verduras. Há dois serviços: uma sopa de macarrão fino e arroz; e as carnes com as verduras. Diferentemente de outros cozidos ibéricos, não leva chorizo nem morcilla, os quais dão lugar às butifarras (salsichas típicas) branca e preta e à "pilota", uma bola feita com carne picada com salsa, ovo e farinha de rosca (mas que pode ter adicionado: pinhões, canela, alho; de acordo com o interesse de cada um). Segue a enumeração completa dos componentes do prato: carne de boi, galinha, toucinho, orelha e pé de porco (eventualmente alguma carne magra, como o lombo), butifarras branca e preta, osso de presunto cru, grão de bico, feijões, batatas, repolho, ovo, nabo, cenoura, alho, farinha, pimenta, canela e salsa.
Como opção de harmonização, não poderia deixar de sugerir um bom vinho da região de Priorat, na própria Catalunha. São vinhos densos e encorpados, ótimos para um prato substancioso como a Escudella Catalana. Pode-se optar também por uma cerveja, e aí, sugeriria uma Fuller's Vintage Ale, de preferência com mais de 5 anos - é isso mesmo! Não é só vinho que envelhece bem, e nem toda cerveja se deve beber fresca, mas este assunto fica para uma próxima!

Salut!

Meu palpite, que não deve ser levado em conta, para o jogo de hoje:
Barça 3 x 1 Real Madrid

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Futebol e Comida: Duelos e Harmonias - Parte 2: Madrid


No segundo texto da série, falarei um pouco sobre Madrid, palco do primeiro jogo da outra semi-final da UEFA Champions League, Real Madrid x Barcelona.
Não é preciso nem falar da importância do confronto - isto é óbvio! Estarão em campo muitos dos melhores jogadores do mundo e alguns duelos ressaltam. Só a título de exemplo, o embate entre o melhor goleiro do mundo na atualidade (Iker Casillas) contra o melhor atacante e jogador do mundo (Lionel Messi); ou então o que envolve um dos maiores zagueiros do mundo, Gerard Piqué, que vive fase esplêndida e Cristiano Ronaldo! É claro que não serão apenas estes duelos que determinarão o jogo. Há muito mais que se analisar, mas isso eu deixo para os especialistas (que aliás já devem estar estafados de tanto tocarem no assunto "Real e Barça"). Fala-se tanto no jogo que não se tem nem tempo para apreciar a partida, que, de fato, é o mais importante a ser feito.
Além de serem as duas melhores equipes do mundo, trata-se de uma das maiores rivalidades no futebol. E por falar em rivalidade, não se pode deixar de citar o aspecto político-histórico que envolve os dois clubes (e as duas cidades). Sem querer me intrometer em assunto tão complexo, vou apenas colocar uma pimenta nesse caruru: a Espanha se formou como Estado a partir da união entre as coroas de Castela e Aragão. O Reino de Castela situava-se ao centro da Península Ibérica e tinha como capital a cidade de Toledo, enquanto o de Aragão se situava mais ao norte, tendo como capital Zaragoza. Depois da união de ambos, formou-se o estado espanhol englobando quase toda a península (só ficou de fora Portugal, que havia sido criado em 1385). Mas espera aí! E o estado da Cataluña? Pois é. Pergunte a um catalão se ele se considera espanhol, e você terá de correr.
Como na semana que vem o jogo é em Barcelona, deixarei para entrar em mais detalhes sobre esta cidade em tal oportunidade. Falemos então sobre Madrid, cidade que é a capital da Espanha desde 1561, e é filha da Era de Ouro da corte espanhola.
Como não poderia deixar de ser, a cidade apresenta uma arquitetura extremamente imponente, rica, até extravagante. Tal riqueza se traduz também na gastronomia que se caracteriza pela diversidade de produtos tanto do mar quanto da "montanha".
Para ilustrar um pouco da culinária madrileña, destaco um prato bastante típico, que inclusive tive a oportunidade de degustar em um dos mais tradicionais bares de Madrid, a Casa Alberto, fundada em 1827. Falo do substancioso, e não menos delicioso, callos a la madrileña, ou seja, um belo ensopado de tripa de boi em companhia de diversos embutidos típicos: morcela, presunto cru, chorizo, etc. Não é a intenção aqui passar alguma receita, até porque não existe uma só possibilidade para o prato. Basicamente, é importante tratar bem a tripa (lavar e deixar de molho em vinagre e sal). Deve-se cozinhar lentamente em água com alguns temperos (tomilho, cravo, pimenta do reino) e cebola, alho e cenoura. Após cozida a tripa, juntam-se os embutidos, colocam-se alguns tomates, um pouco de farinha (se desejar um molho mais espesso) e páprica. Deposita-se tudo numa cazuela de barro e leva-se ao forno brando para finalizar.
Nada melhor para acompanhar este prato que uma cañita bem tirada da choppeira de 200 anos por um garçom nascido pouco depois da inauguração do bar. Deixandos os aspectos emotivos de lado, poderia sugerir um tinto robusto da Ribera del Duero. Porém, novamente preferiria harmonizar com uma cerveja, e aí, ficaria com uma lupulada (amarga) Porter seca, carbonatada, com boa presença de álcool para contrastar com a "gordura", a condimentação e o ligeiro dulçor do prato. Um bom exemplar é a da cervejaria Meantime, de Londres.

Termino novamente com um palpite, o qual garanto que estará errado:
Real Madrid 2 x 1 Barcelona

Salúd!

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Futebol e Comida: Duelos e Harmonias - Parte 1: Gelsenkirchen


Viveremos, nas próximas semanas, alguns dos momentos mais importantes do futebol interclubes do planeta. Por isso, e para reativar este blog outrora deixado às moscas, ponho-me a escrever sobre aspectos que circundam os grandes duelos futebolísticos a que assistiremos a partir desta terça-feira. No primeiro texto da série, falarei sobre a primeira partida da semi-final da UEFA Champions League entre Schalke 04 e Manchester United.
Começando com algumas pitadas de futebol, é válido citar que o confronto envolve as maiores torcidas da Alemanha e da Inglaterra. O time de Gelsenkirchen é certamente o azarão, diante da força e da tradição do United. Este já foi campeão do torneio 3 vezes, enquanto aquele nunca havia chegado às semi-finais da competição. Ainda que os ingleses se apresentem como favoritos, os azuis do norte do Reno contam com Raúl González, ex-Real Madrid, o maior artilheiro da história da Champions com 71 gols e com sua fanática torcida, que pode insuflar a equipe ajudando-a a conseguir um bom resultado em casa partindo para a Inglaterra com a vantagem. Veremos...
O primeiro duelo entre ambos os times dar-se-á em Gelsenkirchen, Renânia do Norte - Vestfália, Alemanha, cidade que cresceu após a Revolução Industrial graças às suas imensas reservas de carvão (as maiores da Europa). Hoje, caracteriza-se pela produção de alta tecnologia e pelo turismo cultural. Há diversos museus e teatros, alguns dos mais modernos do mundo! Por falar em tecnologia, destaca-se, sem dúvida, o próprio estádio que abrigará a partida. A Veltins Arena, inaugurada no início deste século possui cobertura total e, por isso, o gramado se move para que, em certa parte do dia, possa receber sol. O investimento não passou de 300 milhões de dólares, e certamente rende lucros aos responsáveis por sua administração - isto me faz pensar no que se fará em Manaus para a Copa de 2014. Lá, como na Alemanha, o estádio também ficará lotado nos clássicos entre Rio Negro e São Raimundo, e dará um grande retorno! Será?
Deixando de lado este assunto, falarei um pouco sobre um prato típico da culinária da região da Renânia, o Sauerbraten. Trata-se de uma carne (tradicionalmente de cavalo, mas hoje em dia se utiliza, em maior escala, o boi) marinada em vinagre - daí o termo "sauer", ácido em alemão -, vinho, ervas e temperos, assada por algumas horas em panela tampada, no forno ou no fogo direto, servida com o próprio molho, ao qual, após o cozimento da carne, é adicionado açúcar e passas, segundo a forma típica da região tratada, e normalmente, acompanhado de repolho roxo, bolinhos de batata, spätzle, etc.
Obviamente, existem variações quanto a elaboração do prato. As especiarias nem sempre são as mesmas, apesar do uso indispensável do zimbro, do cravo, do louro e da noz moscada: pode-se adicionar, por exemplo, sementes de mostarda, de coentro, canela, etc. O vinho e o vinagre a serem utilizados podem ser de diferentes qualidades ( uvas brancas, uvas tintas, mais ou menos encorpados, etc.). Por isso, ao pensar numa ideal harmonização com um vinho local, já que um pouco ao sul localiza-se uma das mais importantes regiões produtoras de vinhos da Alemanha (conhecida como "média Renânia"), nada é tão exato. Atenho-me a sugerir um bom Riesling, com bom corpo e alguns anos de maturação, se for escolhido um vinho branco. No caso dos tintos, escolha entre as duas uvas predominantes da área - a Spätburgunder e a Portugieser - mas sem tanto destaque. Se a preferência de harmonização for com uma cerveja - opinião da qual eu compartilho neste caso -, ainda que se devam observar as particularidades em cada preparação, seguindo a forma exposta de se elaborar o Sauerbraten em Gelsenkirchen (com um molho encorpado, adocicado e condimentado) sugiro uma doppelbock alemã. Um bom exemplo é a Paulaner Salvator!

Encerro meu primeiro texto da série "Futebol e Comida - Duelos e Harmonias" com um palpite para o jogo (que certamente estará equivocado):
Schalke 04 1 x 1 Manchester United

Até o próximo.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Sobre culinária brasileira (ou culinárias brasileiras)

Quinta-feira de manhã, estava eu em frente ao computador lendo notícias e afins, quando meu pai me mostrou, com bastante entusiasmo (ou algo próximo do máximo que se pode transmitir numa manhã de quinta) um anúncio de jornal. O tal anúncio era de um concurso para "novos chefs", e era preciso enviar uma receita com influência da culinária brasileira.
Pus-me a pensar, então, aceitando a brincadeira, em o que seria culinária brasileira, ou o que seria um prato representativo desta. A pergunta, se bem que clichê, me parece pertinente: "existe culinária brasileira?" Há quem afirme categoricamente: "Óbvio que sim! Ou uma moqueca baiana, feita por uma baiana daquelas no alto do Pelourinho, não é brasileira?"
Sem que eu conseguisse mergulhar num mar de reflexões sobre este ponto de vista, ative-me à possível opinião oposta. Diria o outro: "É claro que não existe. Há, na verdade, culturas gastronômicas regionais, como as autóctones capixaba e paraense, como outras típicas - baiana, mineira, carioca - nas quais se observam influências tais que formam as identidades."
(E aí? Como eu iria criar uma receita com um conceito pré-estabelecido - cozinha brasileira - se eu nem sei se isto existe?)
Voltando ao primeiro ponto de análise, seria a moqueca baiana brasileira de fato? Por que? Seria mais exato caracterizá-la somente como baiana, visto que trata-se de uma cultura local, influenciada por diversos aspectos históricos e geográficos específicos desta região, de acordo com a segunda opinião indicada?
A moqueca baiana não se assemelha à capixaba, ainda que se trate em ambos os casos de um fruto do mar (ou vários) ensopado. E isto vale não apenas para o próprio ensopado, mas para os acompanhamentos também. Experimente perguntar a um pescador em Iriri se a moqueca deveria levar dendê! Ou então, arrisque-se a reivindicar o uso de urucum a uma baiana típica! Talvez seja melhor evitar este tipo de indisposição.
Qual seria a moqueca brasileira? A capixaba, por ser autóctone? Ou a baiana, por congregar a cultura negra africana, a ameríndia nativa e a europeia? Pelo mesmo motivo, a capixaba não deveria ser considerada estritamente capixaba? No caso da baiana, pela razão citada, não deveria ser considerada somente baiana, ou internacional, ou...? Seriam as duas brasileiras? Ou nenhuma?
Pode ser considerado comida brasileira um sashimi de tucunaré? Ou um risoto de muçuã? Por outro lado, poderia ser considerada brasileira uma moqueca de centolla? Ou uma tapioca recheada com shawarma? Tudo isso poderia ser caracterizado como comida brasileira? Ou nada disso? É possível ser tão purista e afirmar que comida brasileira é aquela que não sofre influências nem apresenta apropriações de culturas externas? É um erro considerar que o processo de globalização mantém a existência de uma cultura?
Certamente, impõem-se muito mais perguntas que respostas. Ou respostas muito imprecisas a tantas perguntas? É necessário levar em conta o conceito proposto. O que é "brasileiro"? Haveria, enfim, uma cozinha brasileira ou apenas cozinhas regionais? Seria possível afirmar que a culinária brasileira é formada pelas cozinhas regionais, que, sendo assim, se apresentam como verdadeiras microcozinhas brasileiras?

Um abraço.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Viagens Gastronômicas: Doces Portugueses Parte I

Escrever sobre doces portugueses é “invadir” a história de Portugal. Para tal, é necessário analisar os processos políticos, sociais e econômicos desse, pequeno, Estado Ibérico. Não me aterei a uma documentação historiográfica detalhada, até porque este não é o objeto de estudo. Ainda assim, aproveitarei algumas oportunidades para “salpicar um pouco de História” por cima dos doces mais doces da Europa. Tragam as sobremesas, por favor!

Está longe de mim a pretensão de ter provado um décimo dos doces feitos em Portugal. Apesar disso, listo alguns, os quais representam razoavelmente a cultura confeiteira do país: ameixa d’Elvas, toucinho do céu, pastel de Belém (ou de nata), papo de anjo, pera ao vinho, arroz doce e farófias. Esta seleção, ainda que incompleta, como disse, abrange os principais elementos componentes dos doces de além-mar.

Começo pelas frutas, quase sempre cozidas em açúcar (compotas) ou em vinho, seguindo a tradição galênica (referente ao médico romano Galeno, que se apoiou nas teorias de Hipócrates, da Grécia Antiga) dos quatro fatores básicos: quente, frio, úmido e seco. Tais fatores baseiam-se nos quatro elementos fundamentais da natureza: ar, água, terra e fogo. De acordo com a medicina galênica, plenamente difundida na era pré-moderna, uma alimentação saudável deveria apresentar o equilíbrio entre tais elementos. Variando segundo a própria idade da pessoa (uma pessoa jovem é mais quente e úmida, uma idosa, mais fria e seca) os alimentos deveriam ser consumidos para que se atingisse tal equilíbrio, e o mesmo vale para a cura de doenças. Se uma doença era diagnosticada por excesso de “frio”, deveriam ser ingeridos alimentos “quentes”, e vice-versa. Sendo assim, a pera, fruta muito fria e úmida, deveria ser balanceada com uma substância quente e seca: o vinho tinto (além de especiarias como canela e cravo-da-índia, por exemplo). Isso não vale somente para Portugal, mas para grande parte da Europa também.

Outro elemento é o arroz. Sobre ele já escrevi no texto anterior, mas vale ressaltar que, na época de sua chegada à Europa, o cereal era utilizado na preparação de sopas, para conferi-las maior valor nutritivo, e também na preparação de mingaus e papas (geralmente cozido com leite de amêndoas e açúcar). Foi daí que surgiu o arroz doce, que antes era utilizado como acompanhamento para pratos de carne, ou como revigorante simplesmente.

E o que seria de um toucinho do céu sem as amêndoas? A utilização destes frutos foi influenciada largamente pelos árabes, que ocuparam a Península Ibérica de 710 d.C. até 1492, quando os espanhóis, enfim, consolidaram-se como Estado Nacional (Portugal o havia feito em 1385, na chamada Revolução de Avis). As amêndoas e outros frutos secos, como as nozes, foram utilizados como espessantes para cremes e molhos (a partir da maceração destes em pilão, transformando-os em farinha) ou para cozimento de carnes, peixes, cereais, etc. a partir da utilização do “leite” extraído. Com o tempo tornaram-se a base de tortas e bolos, como o de “mel e nozes”, por exemplo, que tive a oportunidade de provar em Évora, na taverna típica Quarta-feira (veja no primeiro texto da série). Aproveito este momento para dizer que mesmo tendo provado ótimo toucinho do céu em Lisboa, não comi um melhor do que o feito pelo Chef Santos, do Casual Retrô, que segue uma receita de sua avó. Este sim é do Céu!

Para encerrar esta primeira parte, falo sobre as especiarias. Muito apreciadas durante a Idade Média, eram usadas na cozinha de forma indiscriminada, sem sequer haver a preocupação de combiná-las racionalmente. Alguns historiadores defendem que as especiarias eram utilizadas para conservar alimentos, e para mascarar o gosto ruim causado pela dificuldade de conservação dos mesmos. Prefiro a corrente que defende a utilização dos “temperos” como forma de afirmação de status, principalmente porque havia, sim, maneiras mais eficazes e mais baratas de estocagem de carnes (defumação, secagem por salga, etc.) e frutas (compotas, secagem ao sol ou em fornos, etc.). Além disso, o uso de especiarias foi praticamente abandonado pela cozinha palaciana a partir do momento em que seus preços caíram, tornando seu uso mais comum. Logo, depreende-se que a utilização demasiada de especiarias era, de fato, uma maneira de a nobreza se afirmar como classe superior, já que seu uso (em maior ou em menor escala) está relacionado à exclusividade da obtenção delas. Ainda assim, ficaram alguns resquícios desta tradição - muito obrigado! A canela-em-pau e o cravo-da-índia são, ainda hoje, muito utilizados no preparo de cremes e de frutas cozidas. Além disso, a primeira, em forma de pó, é frequentemente espargida sobre os doces, como o arroz doce, a cericaia, o pastel de Belém, etc., além de compor a receita do toucinho do céu. Deve-se citar também a noz-moscada, mas esta já não é tão utilizada em Portugal quanto na Itália ou na França, por exemplo.

Continua...

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Viagens Gastronômicas: II - Algo sobre arroz...

No segundo texto da série, resolvi falar sobre um aspecto da culinária portuguesa que me deixou bastante intrigado. Adianto que não cheguei a uma conclusão, até porque não pude percorrer todas as regiões do país, e, assim, não pude conhecer as diferenças no preparo do prato entre cada uma. Trata-se do arroz. Não do arroz que serve de acompanhamento, ou do arroz cozido para doces ou ensopados "salgados", mas do arroz como elemento básico do prato, misturado com carnes ou frutos do mar.

Um breve comentário histórico: o arroz (Oryza sativa) é uma planta originária do Extremo Oriente, mas já na Antiguidade Clássica era conhecido pelos botânicos e farmacêuticos gregos. A sua introdução na Península Ibérica deu-se por meio dos muçulmanos, que dominaram a Baixa Mesopotâmia e o Egito, estendendo seu cultivo à Palestina e ao Magreb (norte da África, de tradição árabe - ou África Branca), chegando à Andaluzia (sul da Espanha) por volta do século X. A partir de então, o grão nutritivo foi sendo incluído como elemento culinário, normalmente constituindo a base para sopas, misturado com carne ou peixe. Podia, também, ser cozido com leite, manteiga, acúcar ou mel (mais barato), dando forma a um doce extremamente apreciado na alta cozinha muçulmana.
Entendemos, a partir deste parágrafo, o motivo para os arrozes espanhóis (andaluz ou valenciano) serem mais molhados. Seguem a tradição de serem servidos como sopas, ainda que tenham "perdido" um pouco do líquido. O que me motivou a escrever este texto, no entanto, foi o que percebi em Portugal, no que tange à diferença no preparo do arroz quando é feito com carne, ou quando é feito com peixes e outros frutos do mar. E não é só isso. Aqui no Brasil, chefs de tradição portuguesa, ainda que de diferentes regiões, costumam preparar os seus mais parecidos com os arrozes espanhóis do que com os arrozes portugueses (pelo menos de acordo com o que vi durante a viagem). Repito: não pude chegar a uma conclusão suficiente, já que não visitei todas as regiões de Portugal, não sendo possível experimentar o arroz feito no Algarves ou o feito no Douro, por exemplo. Vamos, pois, ao que interessa...

Sentamos, eu e Henrique Cezar, no restaurante "Farta Brutos", sobre o qual escreverei em outra ocasião. No cardápio, constava um apetitoso "Arroz de Pato", prato este que eu já houvera me obrigado a experimentar, assim como um bacalhau ou um toucinho do céu. Pedimos. Além dele, pedimos também língua de vitela ao molho de vinho, que estava ótima, mas isto não vem ao caso. Foi-nos servido um arroz bastante saboroso. A carne do pato estava ótima e desfiava sem que se precisasse do auxílio de uma faca. Mas estava, para meu espanto, seco. Não quero dizer que estava "mal feito", ou que deveria ser servido com um caldo do próprio cozimento da ave. O que acontece é que eu, particularmente, prefiro um arroz mais molhado, e esperava que assim ele viesse. Até porque, cá no Brasil, é de costume que o arroz seja servido bem úmido. Mais uma vez, respeito a maneira com que foi preparado o prato, não é minha intenção dizer o que é melhor ou pior. Trata-se, apenas, de uma opinião, e de uma constatação de diferenças.

Pus-me a pensar, então, e decidi que provaria novamente um ou mais arrozes para sanar esta dúvida intrigante.



No dia seguinte, estávamos em Cascais (acima) e fomos almoçar em um restaurante especializado em frutos do mar. Pedi arroz com camarão, amêijoas e lagosta, sem mesmo consultar meu tio avô, ainda que o prato fosse para dividirmos. Após servir-nos uma leve entrada de aspargos, trouxe-nos, o garçon, uma tijela de barro borbulhante. Era um arroz de frutos do mar. Um arroz como aquele que tinha concebido após me informar sobre a história da introdução do grão na Península Ibérica. Fora o sabor maravilhoso, a consistência ideal, o ponto e o frescor perfeitos dos frutos do mar, saltou-me aos olhos um detalhe: a quantidade de (ótimo) caldo. Não tratava-se de um arroz com boa umidade, como aqui no Brasil costumam servir. Era, de fato, próximo de uma sopa. Fiquei satisfeito. Quer dizer, satisfeito com o prato, mas ainda mais intrigado pelo fato de o arroz de frutos do mar ter sido servido bem molhado, e o de pato ter sido servido seco. Só me restava provar novamente.


À noite, fomos jantar no restaurante "Cozinha Velha"(acima), cujo salão era, realmente, a antiga cozinha do Palácio Real (uma "réplica" de Versailles), em Queluz. Ignoremos as outras etapas, e atentemo-nos ao prato que pedi: coxa de pato laqueada com arroz do próprio pato. Novamente me deparo com um arroz saborosíssimo, com lascas de pato e embutidos misturados. Seco! A coxa estava irreparável, mas o arroz estava seco! Pela última vez: não quero dizer que estava errado, apenas não esperava que esta fosse a maneira comum de se servir arroz de pato.
Estava claro, ou pelo menos parecia, que arrozes de pato (e acho que posso incluir aí o de cabrito, apesar de não ter comido) são servidos secos, enquanto os de frutos do mar são servidos molhados. Precisava confirmar a tese.


Fomos a Sesimbra (acima), cidadezinha de praia ao sul de Lisboa, perto de Setúbal. Além da açorda de camarão (ótima), pedimos arroz de polvo. Sem me alongar muito, digo que estava ótimo, e bem molhado! Também pudera. A lógica é esta. E tem fundamento. Apesar de não ser minha predileção, é concebível o arroz de carne (pato ou cabrito) ser servido seco. O que não o é quando se trata de fruto do mar.
Tese concluída! Ou não! Por que aqui se serve sempre meio úmido? Acho que preciso perguntar ao Santos, ou conhecer Portugal de Norte a Sul. Ou as duas coisas.

Até a próxima!