Escrever sobre doces portugueses é “invadir” a história de Portugal. Para tal, é necessário analisar os processos políticos, sociais e econômicos desse, pequeno, Estado Ibérico. Não me aterei a uma documentação historiográfica detalhada, até porque este não é o objeto de estudo. Ainda assim, aproveitarei algumas oportunidades para “salpicar um pouco de História” por cima dos doces mais doces da Europa. Tragam as sobremesas, por favor!
Está longe de mim a pretensão de ter provado um décimo dos doces feitos em Portugal. Apesar disso, listo alguns, os quais representam razoavelmente a cultura confeiteira do país: ameixa d’Elvas, toucinho do céu, pastel de Belém (ou de nata), papo de anjo, pera ao vinho, arroz doce e farófias. Esta seleção, ainda que incompleta, como disse, abrange os principais elementos componentes dos doces de além-mar.
Começo pelas frutas, quase sempre cozidas em açúcar (compotas) ou em vinho, seguindo a tradição galênica (referente ao médico romano Galeno, que se apoiou nas teorias de Hipócrates, da Grécia Antiga) dos quatro fatores básicos: quente, frio, úmido e seco. Tais fatores baseiam-se nos quatro elementos fundamentais da natureza: ar, água, terra e fogo. De acordo com a medicina galênica, plenamente difundida na era pré-moderna, uma alimentação saudável deveria apresentar o equilíbrio entre tais elementos. Variando segundo a própria idade da pessoa (uma pessoa jovem é mais quente e úmida, uma idosa, mais fria e seca) os alimentos deveriam ser consumidos para que se atingisse tal equilíbrio, e o mesmo vale para a cura de doenças. Se uma doença era diagnosticada por excesso de “frio”, deveriam ser ingeridos alimentos “quentes”, e vice-versa. Sendo assim, a pera, fruta muito fria e úmida, deveria ser balanceada com uma substância quente e seca: o vinho tinto (além de especiarias como canela e cravo-da-índia, por exemplo). Isso não vale somente para Portugal, mas para grande parte da Europa também.
Outro elemento é o arroz. Sobre ele já escrevi no texto anterior, mas vale ressaltar que, na época de sua chegada à Europa, o cereal era utilizado na preparação de sopas, para conferi-las maior valor nutritivo, e também na preparação de mingaus e papas (geralmente cozido com leite de amêndoas e açúcar). Foi daí que surgiu o arroz doce, que antes era utilizado como acompanhamento para pratos de carne, ou como revigorante simplesmente.
E o que seria de um toucinho do céu sem as amêndoas? A utilização destes frutos foi influenciada largamente pelos árabes, que ocuparam a Península Ibérica de 710 d.C. até 1492, quando os espanhóis, enfim, consolidaram-se como Estado Nacional (Portugal o havia feito em 1385, na chamada Revolução de Avis). As amêndoas e outros frutos secos, como as nozes, foram utilizados como espessantes para cremes e molhos (a partir da maceração destes em pilão, transformando-os em farinha) ou para cozimento de carnes, peixes, cereais, etc. a partir da utilização do “leite” extraído. Com o tempo tornaram-se a base de tortas e bolos, como o de “mel e nozes”, por exemplo, que tive a oportunidade de provar em Évora, na taverna típica Quarta-feira (veja no primeiro texto da série). Aproveito este momento para dizer que mesmo tendo provado ótimo toucinho do céu em Lisboa, não comi um melhor do que o feito pelo Chef Santos, do Casual Retrô, que segue uma receita de sua avó. Este sim é do Céu!
Para encerrar esta primeira parte, falo sobre as especiarias. Muito apreciadas durante a Idade Média, eram usadas na cozinha de forma indiscriminada, sem sequer haver a preocupação de combiná-las racionalmente. Alguns historiadores defendem que as especiarias eram utilizadas para conservar alimentos, e para mascarar o gosto ruim causado pela dificuldade de conservação dos mesmos. Prefiro a corrente que defende a utilização dos “temperos” como forma de afirmação de status, principalmente porque havia, sim, maneiras mais eficazes e mais baratas de estocagem de carnes (defumação, secagem por salga, etc.) e frutas (compotas, secagem ao sol ou em fornos, etc.). Além disso, o uso de especiarias foi praticamente abandonado pela cozinha palaciana a partir do momento em que seus preços caíram, tornando seu uso mais comum. Logo, depreende-se que a utilização demasiada de especiarias era, de fato, uma maneira de a nobreza se afirmar como classe superior, já que seu uso (em maior ou em menor escala) está relacionado à exclusividade da obtenção delas. Ainda assim, ficaram alguns resquícios desta tradição - muito obrigado! A canela-em-pau e o cravo-da-índia são, ainda hoje, muito utilizados no preparo de cremes e de frutas cozidas. Além disso, a primeira, em forma de pó, é frequentemente espargida sobre os doces, como o arroz doce, a cericaia, o pastel de Belém, etc., além de compor a receita do toucinho do céu. Deve-se citar também a noz-moscada, mas esta já não é tão utilizada em Portugal quanto na Itália ou na França, por exemplo.
Continua...
quarta-feira, 26 de maio de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário