quarta-feira, 26 de maio de 2010

Viagens Gastronômicas: Doces Portugueses Parte I

Escrever sobre doces portugueses é “invadir” a história de Portugal. Para tal, é necessário analisar os processos políticos, sociais e econômicos desse, pequeno, Estado Ibérico. Não me aterei a uma documentação historiográfica detalhada, até porque este não é o objeto de estudo. Ainda assim, aproveitarei algumas oportunidades para “salpicar um pouco de História” por cima dos doces mais doces da Europa. Tragam as sobremesas, por favor!

Está longe de mim a pretensão de ter provado um décimo dos doces feitos em Portugal. Apesar disso, listo alguns, os quais representam razoavelmente a cultura confeiteira do país: ameixa d’Elvas, toucinho do céu, pastel de Belém (ou de nata), papo de anjo, pera ao vinho, arroz doce e farófias. Esta seleção, ainda que incompleta, como disse, abrange os principais elementos componentes dos doces de além-mar.

Começo pelas frutas, quase sempre cozidas em açúcar (compotas) ou em vinho, seguindo a tradição galênica (referente ao médico romano Galeno, que se apoiou nas teorias de Hipócrates, da Grécia Antiga) dos quatro fatores básicos: quente, frio, úmido e seco. Tais fatores baseiam-se nos quatro elementos fundamentais da natureza: ar, água, terra e fogo. De acordo com a medicina galênica, plenamente difundida na era pré-moderna, uma alimentação saudável deveria apresentar o equilíbrio entre tais elementos. Variando segundo a própria idade da pessoa (uma pessoa jovem é mais quente e úmida, uma idosa, mais fria e seca) os alimentos deveriam ser consumidos para que se atingisse tal equilíbrio, e o mesmo vale para a cura de doenças. Se uma doença era diagnosticada por excesso de “frio”, deveriam ser ingeridos alimentos “quentes”, e vice-versa. Sendo assim, a pera, fruta muito fria e úmida, deveria ser balanceada com uma substância quente e seca: o vinho tinto (além de especiarias como canela e cravo-da-índia, por exemplo). Isso não vale somente para Portugal, mas para grande parte da Europa também.

Outro elemento é o arroz. Sobre ele já escrevi no texto anterior, mas vale ressaltar que, na época de sua chegada à Europa, o cereal era utilizado na preparação de sopas, para conferi-las maior valor nutritivo, e também na preparação de mingaus e papas (geralmente cozido com leite de amêndoas e açúcar). Foi daí que surgiu o arroz doce, que antes era utilizado como acompanhamento para pratos de carne, ou como revigorante simplesmente.

E o que seria de um toucinho do céu sem as amêndoas? A utilização destes frutos foi influenciada largamente pelos árabes, que ocuparam a Península Ibérica de 710 d.C. até 1492, quando os espanhóis, enfim, consolidaram-se como Estado Nacional (Portugal o havia feito em 1385, na chamada Revolução de Avis). As amêndoas e outros frutos secos, como as nozes, foram utilizados como espessantes para cremes e molhos (a partir da maceração destes em pilão, transformando-os em farinha) ou para cozimento de carnes, peixes, cereais, etc. a partir da utilização do “leite” extraído. Com o tempo tornaram-se a base de tortas e bolos, como o de “mel e nozes”, por exemplo, que tive a oportunidade de provar em Évora, na taverna típica Quarta-feira (veja no primeiro texto da série). Aproveito este momento para dizer que mesmo tendo provado ótimo toucinho do céu em Lisboa, não comi um melhor do que o feito pelo Chef Santos, do Casual Retrô, que segue uma receita de sua avó. Este sim é do Céu!

Para encerrar esta primeira parte, falo sobre as especiarias. Muito apreciadas durante a Idade Média, eram usadas na cozinha de forma indiscriminada, sem sequer haver a preocupação de combiná-las racionalmente. Alguns historiadores defendem que as especiarias eram utilizadas para conservar alimentos, e para mascarar o gosto ruim causado pela dificuldade de conservação dos mesmos. Prefiro a corrente que defende a utilização dos “temperos” como forma de afirmação de status, principalmente porque havia, sim, maneiras mais eficazes e mais baratas de estocagem de carnes (defumação, secagem por salga, etc.) e frutas (compotas, secagem ao sol ou em fornos, etc.). Além disso, o uso de especiarias foi praticamente abandonado pela cozinha palaciana a partir do momento em que seus preços caíram, tornando seu uso mais comum. Logo, depreende-se que a utilização demasiada de especiarias era, de fato, uma maneira de a nobreza se afirmar como classe superior, já que seu uso (em maior ou em menor escala) está relacionado à exclusividade da obtenção delas. Ainda assim, ficaram alguns resquícios desta tradição - muito obrigado! A canela-em-pau e o cravo-da-índia são, ainda hoje, muito utilizados no preparo de cremes e de frutas cozidas. Além disso, a primeira, em forma de pó, é frequentemente espargida sobre os doces, como o arroz doce, a cericaia, o pastel de Belém, etc., além de compor a receita do toucinho do céu. Deve-se citar também a noz-moscada, mas esta já não é tão utilizada em Portugal quanto na Itália ou na França, por exemplo.

Continua...

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Viagens Gastronômicas: II - Algo sobre arroz...

No segundo texto da série, resolvi falar sobre um aspecto da culinária portuguesa que me deixou bastante intrigado. Adianto que não cheguei a uma conclusão, até porque não pude percorrer todas as regiões do país, e, assim, não pude conhecer as diferenças no preparo do prato entre cada uma. Trata-se do arroz. Não do arroz que serve de acompanhamento, ou do arroz cozido para doces ou ensopados "salgados", mas do arroz como elemento básico do prato, misturado com carnes ou frutos do mar.

Um breve comentário histórico: o arroz (Oryza sativa) é uma planta originária do Extremo Oriente, mas já na Antiguidade Clássica era conhecido pelos botânicos e farmacêuticos gregos. A sua introdução na Península Ibérica deu-se por meio dos muçulmanos, que dominaram a Baixa Mesopotâmia e o Egito, estendendo seu cultivo à Palestina e ao Magreb (norte da África, de tradição árabe - ou África Branca), chegando à Andaluzia (sul da Espanha) por volta do século X. A partir de então, o grão nutritivo foi sendo incluído como elemento culinário, normalmente constituindo a base para sopas, misturado com carne ou peixe. Podia, também, ser cozido com leite, manteiga, acúcar ou mel (mais barato), dando forma a um doce extremamente apreciado na alta cozinha muçulmana.
Entendemos, a partir deste parágrafo, o motivo para os arrozes espanhóis (andaluz ou valenciano) serem mais molhados. Seguem a tradição de serem servidos como sopas, ainda que tenham "perdido" um pouco do líquido. O que me motivou a escrever este texto, no entanto, foi o que percebi em Portugal, no que tange à diferença no preparo do arroz quando é feito com carne, ou quando é feito com peixes e outros frutos do mar. E não é só isso. Aqui no Brasil, chefs de tradição portuguesa, ainda que de diferentes regiões, costumam preparar os seus mais parecidos com os arrozes espanhóis do que com os arrozes portugueses (pelo menos de acordo com o que vi durante a viagem). Repito: não pude chegar a uma conclusão suficiente, já que não visitei todas as regiões de Portugal, não sendo possível experimentar o arroz feito no Algarves ou o feito no Douro, por exemplo. Vamos, pois, ao que interessa...

Sentamos, eu e Henrique Cezar, no restaurante "Farta Brutos", sobre o qual escreverei em outra ocasião. No cardápio, constava um apetitoso "Arroz de Pato", prato este que eu já houvera me obrigado a experimentar, assim como um bacalhau ou um toucinho do céu. Pedimos. Além dele, pedimos também língua de vitela ao molho de vinho, que estava ótima, mas isto não vem ao caso. Foi-nos servido um arroz bastante saboroso. A carne do pato estava ótima e desfiava sem que se precisasse do auxílio de uma faca. Mas estava, para meu espanto, seco. Não quero dizer que estava "mal feito", ou que deveria ser servido com um caldo do próprio cozimento da ave. O que acontece é que eu, particularmente, prefiro um arroz mais molhado, e esperava que assim ele viesse. Até porque, cá no Brasil, é de costume que o arroz seja servido bem úmido. Mais uma vez, respeito a maneira com que foi preparado o prato, não é minha intenção dizer o que é melhor ou pior. Trata-se, apenas, de uma opinião, e de uma constatação de diferenças.

Pus-me a pensar, então, e decidi que provaria novamente um ou mais arrozes para sanar esta dúvida intrigante.



No dia seguinte, estávamos em Cascais (acima) e fomos almoçar em um restaurante especializado em frutos do mar. Pedi arroz com camarão, amêijoas e lagosta, sem mesmo consultar meu tio avô, ainda que o prato fosse para dividirmos. Após servir-nos uma leve entrada de aspargos, trouxe-nos, o garçon, uma tijela de barro borbulhante. Era um arroz de frutos do mar. Um arroz como aquele que tinha concebido após me informar sobre a história da introdução do grão na Península Ibérica. Fora o sabor maravilhoso, a consistência ideal, o ponto e o frescor perfeitos dos frutos do mar, saltou-me aos olhos um detalhe: a quantidade de (ótimo) caldo. Não tratava-se de um arroz com boa umidade, como aqui no Brasil costumam servir. Era, de fato, próximo de uma sopa. Fiquei satisfeito. Quer dizer, satisfeito com o prato, mas ainda mais intrigado pelo fato de o arroz de frutos do mar ter sido servido bem molhado, e o de pato ter sido servido seco. Só me restava provar novamente.


À noite, fomos jantar no restaurante "Cozinha Velha"(acima), cujo salão era, realmente, a antiga cozinha do Palácio Real (uma "réplica" de Versailles), em Queluz. Ignoremos as outras etapas, e atentemo-nos ao prato que pedi: coxa de pato laqueada com arroz do próprio pato. Novamente me deparo com um arroz saborosíssimo, com lascas de pato e embutidos misturados. Seco! A coxa estava irreparável, mas o arroz estava seco! Pela última vez: não quero dizer que estava errado, apenas não esperava que esta fosse a maneira comum de se servir arroz de pato.
Estava claro, ou pelo menos parecia, que arrozes de pato (e acho que posso incluir aí o de cabrito, apesar de não ter comido) são servidos secos, enquanto os de frutos do mar são servidos molhados. Precisava confirmar a tese.


Fomos a Sesimbra (acima), cidadezinha de praia ao sul de Lisboa, perto de Setúbal. Além da açorda de camarão (ótima), pedimos arroz de polvo. Sem me alongar muito, digo que estava ótimo, e bem molhado! Também pudera. A lógica é esta. E tem fundamento. Apesar de não ser minha predileção, é concebível o arroz de carne (pato ou cabrito) ser servido seco. O que não o é quando se trata de fruto do mar.
Tese concluída! Ou não! Por que aqui se serve sempre meio úmido? Acho que preciso perguntar ao Santos, ou conhecer Portugal de Norte a Sul. Ou as duas coisas.

Até a próxima!